quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Parte II

Os disparos fizeram-se ouvir em toda a superfície comercial, no parque de estacionamento adjacente e no elevador que dava acesso ao piso superior. Ninguém pôde ficar indiferente àquele som que se entranhou na espinha, que provocou arrepios e, segundos mais tarde, despertou o medo e a insegurança, o silêncio ensurdecedor momentâneo e o pânico que despoletou a vontade cerebral de desatar a correr à qual as pernas teimavam em não corresponder.
Ao fundo, no corredor de higiene pessoal, um bebe chorava piedosamente por uma fresca e limpa fralda. O choro foi momentaneamente interrompido, como se alguém estivesse a colocar "pausa" naquela cena. No entanto, um simples clique na tecla play fez a restante clientela escarrapachar a palma da sua mão contra as orelhas frias e ligeiramente coradas pelo sol de Verão.
Mais uma vez, o chefe da loja viu-se obrigado a interromper o seu momento zen com o seu cigarro para se dedicar ao som parecido com o que um cliente desajeitado faz quando tenta tirar uma caixa de 32kg de detergente para a lavar a roupa e faz derrubar as restantes 5 (ou mais) adjacentes.
Um casal que tinha acabado de entrar na loja segundos depois do cliente das botas imundas inverteu de imediato a sua marcha ao visualizar a arma do mesmo. O homem dos seus trinta anos com óculos muito graduados ainda teve dificuldades em colocar a chave para abrir a porta e a sua mulher de saltos tão altos que nem lhe permitiam uma postura correcta gritava-lhe do outro lado do carro "Abre a porta, homem! Despacha-te!". O nervosismo deixava-o quase cego para aquela fechadura que nunca lhe parecera tão estreita e pequena como agora. Quando, finalmente, conseguiram ambos entrar, colocou o seu pé pesado no acelerador e os pneus até chiaram quando fez a curva à saída do parque de estacionamento. Um grupo de jovens que habitava no bairro social a 100 metros do supermercado riram tão alto do sucedido que todas as pessoas que passeavam na rua olharam na sua direcção, tentando manter alguma discrição. Eles não se importaram ou, pelo menos, era o que as 5 garrafas de vodka e as dezenas de cerveja que os rodeavam declaravam.
As botas imundas alinharam a sua pontaria para o seu denunciador, o rapaz de barba cuidadosamente aparada e nariz pontiagudo. O seu corpo sentiu o impacto do intruso apenas alguns segundos após o incidente. A sua reacção foi olhar de imediato para o local onde tinha sido atingido. O homem escanzelado observava o seu feito com uma expressão quase indecifrável. Parecia vazia de mágoa, vazia de revolta, vazia de alívio, vazia de satisfação. Era, simultaneamente, vazia e repleta de diferentes sensações e sentimentos. Após se ter apercebido que a t-shirt azul clarinho se tornava avermelhada, o rapaz minou a figura paternal com um olhar de tristeza e de comiseração.