domingo, 28 de outubro de 2012

Não.

Eu não fui feita para ser chamada de princesa. 
Há um instinto natural que me leva a esbofetear quem teve essa infeliz ideia. Eu não me dou a conhecer a desconhecidos embora o meu sorriso genuíno te possa incitar a pensar o contrário. Eu não perco nem perderei horas a fio a escolher a melhor roupa para te impressionar. Eu nunca terei a delicadeza de abrir a porta do metro só para ti. Eu não vou deixar de dizer o que quero só porque me estás a observar atentamente numa tentativa de intimidação. Eu não vou suportar as tuas crises infantis quando o canal de futebol parar de funcionar a meio de um qualquer jogo de futebol. Nunca tolerarei qualquer gesto ofensivo vindo de ti. Ficarei rabugenta se dormir pouco ou se estiver cansada e tu terás de me aturar. Quererei que percas horas a falar comigo sobre as coisas mais banais da vida. Continuarei a chorar baba e ranho enquanto estiver a ler os meus romances de trazer por casa. Possivelmente, retomarei o meu vício de adormecer enquanto vejo filmes. Irei querer ficar sozinha, longe de tudo e de todos, só porque sim. Irei respeitar-te até que deixes de te dar ao respeito. Podes ter a certeza que terás o meu apoio, o meu abraço nos teus momentos de tristeza ou angústia. Exigirei os teus mimos, o teu carinho e um beijinho na testa todos os dias. Irei dar-te toda a minha atenção de cada vez que tiveres um problema no emprego. Não te atrevas a dizer que adoras as minhas mãos. Abraçar-te-ei como se fosse a última vez que o pudesse fazer. Não darei o braço a torcer para aceitar as tuas aventuras amorosas. Quero-te só para mim. Não me obrigues a deixar de roer as unhas porque é quando terei mais vontade de o fazer. Fixar-te-ei olhos-nos-olhos e espero que retribuas. Partilharemos as tarefas domésticas porque, caso não saibas, já não estamos na idade média. Vou deixar o que tenho a fazer para a última da hora e peço-te desculpa, desde já, por isso mesmo. Acolherei com carinho os teus conselhos embora não te posso prometer que os seguirei à letra. A minha paciência permite-me que aguarde a tua chegada.

terça-feira, 9 de outubro de 2012

Parte III

O chefe que tresandava a tabaco acabara de se aproximar das caixas quando, movido pelo pânico, se dirigiu ao seu escritório. Pegou no telefone e com os dedos tremelicando, conseguiu digitar o 112. "Sim?" "Têm de vir imediatamente, um cliente levou um tiro! ... Sim, é essa a morada... O meu nome? Huh... Mário. Sim... por favor, venham depressa. Sim... Obrigado."
Apoiando o telefone na base, sente o seu coração a palpitar mais forte, cada vez mais forte. Sem largar o telefone, olha através do vidro que rodeia o seu gabinete e vê duas, três, quatro pessoas a saírem da loja com olhos diabólicos e assustadores, lágrimas no canto do olho. "Isto não pode estar a acontecer", pensa ele. "Não na minha loja...". Inspira e expira, abrindo a porta do escritório e dirigindo-se ao local.
O homem escanzelado baixa a cabeça, suspirando e a rapariga da caixa aproveita para se dirigir, lentamente, na direcção do rapaz, tentando não despertar a atenção do primeiro. As palavras não lhe saem da boca. Ambos fixam o seu olhar um no outro. São interrompidos pelo homem de botas imundas que expira profundamente, fixando os olhos na sua descendência e deixando um hálito insuportável no ar, dizendo "Eu sei porque me denunciaste. A tua mãe iria ficar orgulhosa de ti. Mas o meu desespero foi momentaneamente mais forte que a minha capacidade de compreensão". E nisto, sai da loja a correr com receio de ser apanhado pela polícia. Os três observam a cena em silêncio, sem moverem um centímetro. "Talvez seja melhor deixá-lo ir, não sabemos quantas balas ainda lhe restam." - proferee Mário.
"Que queria ele dizer com "a tua mãe iria ficar orgulhosa de ti"? Será que ele conheceu a minha mãe?" - pensa em voz alta. "As minhas recordações dela são muito escassas, ela morreu quando eu tinha sete anos". Surpreendida pela revelação, ela aperta-o junto do seu peito, dando-lhe o conforto que ele procurava. O rapaz repara na placa que ela tem pendurada ao peito: "Ema Isamu". Até então não soubera o seu nome pois não tinha tido coragem o suficiente para olhar para ela enquanto estava à sua frente.
A dor que sente no seu braço esquerdo aterroriza-o por dentro mas tenta manter a sua serenidade. De seguida, olha para ela e pergunta-lhe "É um nome japonês? O que significa?". Ela esboça um pequeno sorriso, inclina a cabeça na direcção do seu rosto e sussurra "Guerreiro, corajoso".
O som da sirene aproxima-se e dois homens entram a correr no estabelecimento. O chefe de loja encontra-se à entrada da loja pedindo às pessoas para voltarem mais tarde, pedindo desculpa pelo incómodo. As pessoas espreitam para dentro da loja, na tentativa de saber o que aconteceu. O chefe ignora o seu olhar curioso, repetindo o mesmo monólogo.
Os dois homens observam a cena e começam a colocar questões "Há quanto tempo é que ele está assim?", "Consegue-me ouvir?", "Como é que se chama?"
"Gonçalo."
"Siga esta luz com os seus olhos."
Ema observa atentamente cada gesto, o movimento do seu olhar.
"Bom, vamos ter de o levar para o hospital. Tem algum familiar que possa vir consigo?"
"Não" - murmura ele.
"Eu podia ir Mário, a Joana chega daqui a 15 minutos."
"Ó chefe, o melhor é fechar o estabelecimento. A polícia já está a caminho e vai querer colocar questões e avaliar o local" diz um dos socorristas.
"Pois, já estava a prever isso. Bom, podes ir Ema. Acho que consigo tomar conta disto sozinho durante 15 minutos... De qualquer forma, terei de contactar a supervisora para lhe contar o sucedido" - suspira o chefe.
"Vamos. 1...2...3, hop!"
Ema segue-os num passo acelerado, aproveitando para tirar o seu avental, embrulhando e colocando-o no bolso das calças. Desprende o cabelo e agita-o entre os seus dedos finos e grandes. Gonçalo saboreia cada gesto, boquiaberto. Ela apercebe-se e esboça-lhe um sorriso confortante. "Vais ficar bem", murmura ela.

_____________________________________________

As lágrimas caem lentamente no seu rosto. Guilhermino observa uma fotografia que guarda no bolso há 16 anos. "Porque é que me fizeste isto?" - sussurra ele, sabendo que não irá obter nenhum feedback.
"Ela não teve culpa de ter ficado doente" - intervém uma voz feminina.
"Não se meta nisto!" - responde ele furiosamente.
"Olha lá, que culpa tem o miúdo de ter tido um pai que nada soube fazer por ele?" - riposta a voz feminina.
"Cala-te!" - num tom ainda mais enfurecido, levanta-se e fixa-se nos olhos do seu inimigo. "Tu não sabes nada de nada! Ouviste? Nada de nada!"
"Sei demais, até!" - responde-lhe a figura feminina, não se mostrando minimamente afectada pela fúria do homem escanzelado. "O que é que te deu na cabeça hoje?" - questiona-o, após alguns segundos de silêncio.
"O quê?" - responde-lhe num tom surpreendido. É impossível que ela saiba o que aconteceu.
"As pessoas que estavam na loja começaram logo a bater com a língua nos dentes, o que é que achas?"
Merda, pensa ele.
"Não me apetece falar sobre isso" - responde-lhe em tom baixinho.
"É melhor que comeces a habituar-te à ideia porque não tarda a polícia está a bater aí à porta!"